A Cidade e as Canções



A urbanista Jane Jacobs disse, na sua última entrevista em 2006, que aquilo que deixamos aos nossos filhos são as cidades e as canções.

Para Jacobs, a cidade deve ser um palco de relações de vizinhança, de encontro entre pessoas e de confronto com a diferença. É na diversidade cultural, no contacto entre diferentes estratos sociais, culturais, económicos e no confronto com a diferença que a igualdade e a coesão social se devem estabelecer. Uma rua com gente é mais segura que uma rua despovoada.

Contrariando esta lógica, e baseando-se no princípio de que diferentes grupos não querem viver em conjunto, surgiu o modelo do espaço defensivo de Óscar Newman (1972). Este modelo baseia-se sobretudo na delimitação clara dos territórios, habitados exclusivamente por grupos com características semelhantes. Estes são, fechando-se sobre si mesmos, o principal garante da sua própria segurança. Para Newman, o espaço publico deve ser amplo, despovoado, homogéneo e de fácil controlo securitário.

Pensando na aplicação prática deste modelo, facilmente chegamos aos condomínios privados. Espaços de aparente bem-estar em que, pelo fechamento construímos a (suposta) segurança. Mas este modelo não faz sentir a influência apenas na esfera dos grupos sócio-económicos mais poderosos. A um outro nível, a lógica do espaço defensivo é posta em prática em muitos processos de realojamento de populações insolventes por todo o mundo, quer por questões de controlo social, quer, sobretudo, por lógicas meramente economistas. Com que custos?

Se do ponto de vista da segurança, e até mesmo da intervenção das organizações de cariz social, esta concentração é uma vantagem, podendo até do ponto de vista cultural gerar uma concentração e uma riqueza que se podem tornar um potencial de intervenção e valorização territorial, duas desvantagens estão a ganhar um peso significativo enquanto facto de risco social: o desaparecimento de espaços públicos que possibilitem encontro de uns e outros (que espaços públicos partilhamos hoje?) e o aumento da percepção do medo.

Para Jacobs, o envolvimento das pessoas nos lugares é um processo de participação democrática decisivo e o espaço público é o palco privilegiado para trabalhar o conhecimento mútuo. Só assim, pelo contacto real entre real entre pessoas diferentes, a gestão da diversidade se pode efectivamente fazer, aceitando que quanto mais conhecemos (lugares, pessoas, coisas), mais dificilmente tendemos a discriminar. Fechando-nos mutuamente, estaremos a criar sociedades blindadas, baseadas no medo.

Afinal, que modelo de cidade queremos nós deixar aos nossos filhos? Uma cidade com lugar para todos ou um conjunto de retalhos urbanos em que a contiguidade substitui a continuidade?

Precisamos, urgentemente, de mais bairro no Mundo e de mais Mundo no bairro. Precisamos, urgentemente, de falar dos que resistem – a maioria. Dos que, contra todas as adversidades, são resilientes, constroem, empreendem, capacitam-se e, mesmo contra todas as expectativas, agarram com as próprias mão a construção dos seus mundos. Só assim poderemos contribuir para tecer a cidade e deixá-la um pouco melhor aos que nos seguirão.


Dr. Pedro Calado
Director do Programa Escolhas

In Revista [Escolhas] nº 10, de Novembro de 2008, texto inserido no blog, com a devida autorização do Dr. Pedro Calado.

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